Driblando desafios: a realidade de jovens de periferia que sonham em viver do esporte
Projeto social da UNAS forma jovens da comunidade para o esporte e para vida
É poético dizer que o futebol é um esporte enraizado no DNA de muitos brasileiros e brasileiras desde a infância, seja na vibrante torcida pelos times locais, e também nos internacionais, ou nas quadras e campos de futebol nas ruas, das escolas, das praças e das favelas. O sonho, muitas vezes acompanhado pelo desejo de se tornar jogador profissional, é um anseio comum entre muitas crianças no país do futebol, refletindo não apenas uma paixão pelo esporte, mas também uma esperança de conseguir uma vida melhor para si e para a família. Para muitas crianças e adolescentes, o futebol representa uma oportunidade de superar muitos desafios.
Muitas vezes é no campo de asfalto e em espaços improvisados que estes sonhos e as habilidades se manifestam e se moldam. Foi assim que Daiane Oliveira, uma mulher batalhadora de 39 anos e que mora em Heliópolis há mais de 20 anos, descobriu os sonhos do filho nos pés. Ela é mãe de Gusthavo Oliveira , um atleta mirim de 11 anos cujo sonho é ser jogador profissional de futebol. “Ele ainda era bem pequeno e gostava de jogar bola com os primos.” ela recorda. “E então começamos a perceber o quanto ele era bom.”
Acreditando na oportunidade de desenvolver suas habilidades e o sonho do filho, Daiane e seu marido - e pai do Gusthavo, José Soriano, 47, começaram a procurar pelas tradicionais escolinhas de futebol para cadastrá-lo. No começo deste ano, alguns amigos de Gusthavo o chamaram para participar do Projeto Futsal Heliópolis, realizado pela UNAS em Heliópolis desde 2012 o projeto já impacto à vida de milhares de crianças, adolescentes e jovens por meio do esporte. Interessado, Gusthavo comentou com os pais sobre a ideia de ir para o projeto e sua mãe, Daiane procurou pela educadora Paty Alves. “E lá percebemos que ele também é muito bom no futsal.”
“É contagiante ver como ele tem alegria de jogar bola.” comenta Fábio Luiz Fioratti, coordenador do projeto, ao lembrar do estilo de jogo de Gusthavo. “Ele é muito habilidoso, tem tomadas de decisões rápidas e certas com tão pouca idade.”
Hoje o Gusthavo divide os seus dias participando entre a pratica esportiva e a escola. Para ele, viver com o futebol tem sido maravilhoso. “Tive a oportunidade de participar dos treinos e campeonatos do projeto. Eu adoro jogar bola e estar aqui é muito bom, e espero chegar no meu objetivo de ser um jogador profissional.”
Em Heliópolis, a ideia de envolver esporte e educação e promover o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes que participam dos projetos, utilizando práticas esportivas como um meio para ensinar habilidades e valores importantes, como trabalho em equipe, responsabilidade - e responsabilidade social -, e autocontrole. Essas abordagens que transcendem apenas o jogo com as bolas nos pés e capacidades físicas e táticas, e buscam também fortalecer aspectos mentais, morais e sociais.
“Eu acredito no esporte como uma ferramenta para a educação, e eu uso o projeto como esse centro de referência.” explica Fábio. Para ele, este processo esportivo pedagógico exige muito a participação da família e o envolvimento na vida das crianças e adolescentes como um importante facilitador, garantindo o apoio e uma estabilidade emocional e o engajamento dos e das atletas. “Ele está iniciando a trajetória dele, mas observo que em todos os treinamentos que ele faz, tem a mãe filmando.” comenta Fábio. “O pai dele usa o carro pra levar ele e os colegas para os jogos. Isso dá um apoio para o garoto saber que além de gostar, o apoio dos pais é o principal facilitador da própria felicidade dele de estar dentro da quadra.”
“E ele está amando, porque ele participa dos campeonatos e isso é desafiador pra ele.” conta Daiane. “Tudo isso pra gente é muito bom e importante, ver as crianças buscando seus sonhos e a UNAS faz com que as crianças saiam das ruas.”
Gusthavo está hoje no finalzinho do quinto ano do ensino fundamental e vem tentando equilibrar a vida mirim de atleta com os estudos, mas com a assistência dos pais vem se esforçando para não desistir da sua educação, que como diz a sua mãe vem em primeiro lugar. “Eu falei pra ela que vou equilibrar os dois.” explica ele. “A escola é importante e o meu sonho também.”
Da mesma forma que os meninos sonham em driblar, marcar gols e sentir a ampla emoção do futebol, por outro lado as meninas também se alimentam desse sonho, imaginando-se em campo, desafiando preconceitos com a mesma determinação. Mas até pouco tempo atrás, o sonho de uma menina jogar futebol era frustrado desde a infância com as inúmeras barreiras erguidas pelo machismo e conservadorismo, como a falta de investimento, a escassez de oportunidade e outros pontos desmotivadores.
Ainda assim, foi em uma partida de futebol de um dos projetos realizados em Heliópolis que Anna Beatriz, na época com 9 anos, manifestou o seu amor pelo futebol e pelo esporte. Na época, ela estava assistindo o jogo com a sua mãe e foi ali que este sonho estava a uma linha de ser vivido.
“Comecei em um projeto que tinha no CEU Heliópolis chamado ‘Futebol de Rua’ e tinha apenas eu e a minha amiga Duda de meninas.” lembra Anna Beatriz, hoje com 19 anos. “E assim eu fui me apaixonando cada vez mais pelo futebol.” Embora seja um sonho, tanto para meninos quanto para meninas, o futebol é frequentemente moldado por estereótipos de gênero e mesmo hoje, em 2024, o futebol feminino ainda briga pelo seu espaço de existência, re-existência e de respeito.
Para Anna Beatriz, assim como para muitas atletas - profissionais, amadores ou sonhadoras - a desvalorização e desrespeito ao futebol feminino é um fator indignante e desmotivacional. E foi assim, e juntando muitos problemas, que a realização de um sonho foi ameaçada. “Eu pensava em desistir e também estavam acontecendo alguns problemas em casa e o futebol feminino não era valorizado.” relata Anna.
Foi entre os 14 e 15 anos que Anna Beatriz começou a participar do Projeto Futsal Heliópolis, e neste espaço ela encontrou apoio, resiliência e sororidade. E o futebol demonstrou uma de suas raízes, é um esporte que une e que também empodera, independente de quem joga. “O projeto foi muito importante pra mim, ele me ajudou muito quando estava querendo desistir. O Fábio (Fioratti) e a Patty (Alves) me ajudaram muito com isso, me ajudaram a não desistir do sonho.”
Em um esporte onde se joga junto, a paixão de Beatriz pelo futebol foi driblando os desafios e os problemas, tornando-se mais forte e vigorante. “Vi que o projeto me fazia muito bem em relação a minha saúde e amizades. Eu gostava muito de ir treinar e não faltava em nenhum treino.”
Foi quando as oportunidades começaram a aparecer, em Novembro de 2021, Anna Beatriz Barbosa foi relacionada para disputar o Campeonato Brasileiro Feminino Sub-16 pelo Palmeiras e embora tenha sido uma experiência maravilhosa, ela também foi desafiadora. “Muito nova ela teve que abrir mão de morar com a família e de estar com as amigas e amigos. Ele morou por seis meses dentro de um CT em Jundiaí para jogar o campeonato pelo Palmeiras.” lembra Fábio. “E tudo o que conversamos envolvia a família, para entender todo o procedimento. E a minha sensação é que a família aceitava, o sonho, a busca, o foco e o apoio total deles.”
Após atuar pelo Palmeiras, Anna conseguiu também uma vaga no Corinthians Feminino no Futsal e também no Tiger, um projeto de revelação de atletas. Hoje Anna Beatriz aos 19 anos está cursando Educação Física através da bolsa de estudo que recebeu por meio do projeto "Jogos Universitários Brasileiros", que é realizado com a participação de universidades de todo o Brasil e que contempla alunos com bolsas de estudos para que disputem competições federadas representando suas universidades. “Eu queria muito continuar na área do esporte e estava em dúvida de fazer educação física e fisioterapia. Mas me interessei com os trabalhos dos meus treinadores e professores, era isso que eu queria seguir.” Anna conseguiu por meio de seu talento, sua garra e das oportunidades unir a continuidade no futsal com o acesso a universidade.
Hoje além da rotina de treinos, jogos e estudos, Anna Beatriz trabalha em uma escolinha de futebol localizada na zona norte de São Paulo. A experiência tanto na escolinha quanto na faculdade é a garantia de que está no lugar certo. “Me deu mais certeza do que eu quero seguir no futuro.”
Na semana em que a Seleção Brasileira de Futsal conquistou o seu hexacampeonato mundial, relembramos a importância do direito e a inclusão no futebol e em todo o universo esportivo. São muitos os Gusthavo e muitas as Beatriz que na busca pelo sonho se depara com dificuldades como a ausência do próprio estado e o investimento precário tanto na educação quanto nos projetos esportivos e a na manutenção dos equipamentos esportivos. Um exemplo deste descaso ao acesso ao esporte, lazer e cultura é o abandono das obras do Parque da Cidadania em Heliópolis.
Por outro lado, o futebol muitas vezes é definido como um universo a parte da realidade como tem sido demonstrado em diversos casos na elite do futebol brasileiro, mas a história de Anna Beatriz e Gusthavo revelam que o futebol é um mecanismo de transformação social é uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento pessoal e social, e que, apesar dos desafios e das barreiras enfrentadas, o esporte pode sim transcender gêneros e preconceitos.
Comments